terça-feira, 3 de junho de 2014

Morador

                    Por Isabela Lisboa

Meu nome é Saudade. Sobrenome?
— Não sei, não
A rua é minha casa
onde o teto é papelão

Minha cama é a cidade. A comida?
— O que me dão
Visto cobertor e asa
e me banho de ilusão

Ou realidade?
— Quanta confusão!
Tanta gente junta só
e eu só com a solidão.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

Uma lição: a gente nunca sabe.

  • livy
  • A gente nunca sabe o que o outro precisa.
    Mas saber, a gente não sabe.
    A gente pergunta, a gente tenta, a gente inventa.
    Algumas pessoas passam pela nossa vida, mesmo como figurantes. E nós tentamos descobrir o que elas precisam. Como podemos fazer ali uma papel maior do que a do passante que não repara. Nem sempre, no entanto, é possível descobrir.
    Frustrante ou não, uma outra lição é aprender a respeitar o espaço do outro. Sem saber porquê uma conversa ou um abraço foi rejeitado, temos que aprender a ir embora, resguardar quem prefere ser resguardado.
    Algumas vezes, sair às ruas é assim. Não encontramos como, nem onde ajudar. Não encontramos quem nos ajude tampouco. E o respeito pela vontade do outro é maior.
    Um escritor visto diariamente na Consolação não quis nenhum tipo de aproximação. Nossas lombrigas loucas pelos textos alheios reviraram nossos estômagos cheios.
    O Robinson, catador de latinhas, também não quis papo. Só insistiu em que fôssemos conhecer sua amiga, que com certeza era minha mãe de tão parecidas que somos. É o jeito, a fisionomia!
    A gente nunca sabe o que o outro precisa.
    A gente tenta, a gente inventa. E parte do processo é, às vezes não chegar lá.
    ,

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Uma Coca-Cola e um pacote de bolachas

Uma Coca-Cola e um pacote de bolachas
Por Ariadne Senna

  Ele estava sentado tomando uma Coca-Cola e com um pacote de bolachas nas mãos. Sentei-me ao seu lado e começamos a conversar.
  Seu nome era Emerson e disse que vinha com frequência para aqueles lados da Rua Consolação. Contou-me que, apesar dos seus 43 anos, ainda mora com a sua mãe em um apartamento que fica próximo ao cruzamento da Alameda Santos com a Rua Pamplona. Comentou que gosta de viver com a sua mãe pois ela já o ajudou várias vezes e não tem vergonha de dizer que a ama muito e que é muito agradecido por tudo que ela já fez por ele.
  Perguntei se ele nunca havia se casado e ele respondeu que sim, uma vez, mas que, apesar de se gostarem muito, a relação não deu certo e acabou. Disse também que teve uma filha com esta mulher, no entanto após o divórcio a mulher se mudou com a menina para outro estado e Emerson não teve mais contato com elas.
  Relata que na época acabou deixando-as ir embora mas que hoje se arrepende: “É, a gente erra nessa vida”, falou ele e emendou dizendo que até sente vontade de reencontrar a filha mas que prefere não ir atrás dela porque tem medo de ser rejeitado por não ter cumprido o seu papel de pai.
  Continuamos a conversar sobre coisas cotidianas e Emerson comentou sobre a morte do ator José Wilker, disse que até se assustou por ter sido uma morte tão repentina. Emerson contou que gosta muito de ler jornal e que, para ele, jornal tem que ser jornal do dia, pois não gosta de ler o jornal de ontem com notícias já atrasadas.
  Disse que na verdade não passa muito tempo em casa pois sai bastante e tem muitas histórias pra contar de tantas coisas que já aconteceram com ele! “A vida é difícil, mas a gente faz as nossas escolhas”, comentou ele com um certo ar de sofrimento mas certo de que a vida é a gente quem faz.
  Emerson é dependente de crack e de tempos em tempos escolhe morar na rua, criando maneiras de sobreviver e de suprir o seu vício. A Coca-Cola e o pacote de bolachas foram comprados por mim e algumas amigas a pedido dele. Em certo momento Emerson nos mostrou uma sacola de supermercado cheia de pacotes e mais pacotes de bolachas e nos confessou que não iria comer tudo aquilo mas que iria vender para comprar crack.
  Se nos arrependemos de comprar aquele pacote de bolachas para ele? Não. Porque conversamos e pudemos conhecer um pouco do Emerson e assim respeitá-lo em sua maneira de ser. “Vocês são muito gente boa, vocês só merecem a verdade”, ele disse. Nós que agradecemos Emerson, por você ter nos recebido tão bem em sua casa.

domingo, 18 de maio de 2014

convívio com a criançada

Ontem, sábado 17 de Maio, o N1 recebeu crianças do "Lar de Nazaré" para assistir a apresentação do experimento e de seguida para conversar, desenhar e trocar ideias sobre o mesmo!
Tendo como tema o criancismo, foi uma experiência muito enriquecedora! Esperamos continuar a levar essas crianças a sair mais vezes do seu espaço para assistir teatro e arte!

segunda-feira, 12 de maio de 2014

10 de Maio

Manhã de sábado do dia 10 de maio de 2014. Brisa outonal num prenúncio de dia sem sol. À espera do ônibus que me deixará na Avenida Imirim, em Santana.
Corredor da Avenida Rio Branco, travessa da Alameda Nothman.
Casacos, mãos nos bolsos, homens e mulheres aguardando o transporte.
Ao longe a figura se aproxima: um homem andando com um pedaço de madeira feito uma bengala. Esbarra, tropeça, tateia.
Seus olhos cegos não veem a cor do dia. Não enxergam nossos olhos que não desviam a atenção de sua figura.
Caminha lentamente. Mal chega e grita: “Que ônibus é esse?”
Um sujeito responde depois de longo silêncio: “Terminal Pirituba.”
O homem se prostra entre nós. Silêncio incômodo.
Aproximo-me, curvo e pergunto: “Qual ônibus o senhor vai pegar?”
Ele ergue a cabeça, os olhos encerrados no vazio, sorrindo responde: “Casa Verde ou algum outro que passe no albergue ali da frente. Eu moro na rua, sabe?.”
“Eu te aviso quando o ônibus chegar. Você mora na rua e anda sozinho por aí, sem ninguém pra te ajudar?”
“Eu e Deus! Fazer o quê, né! Cê me avisa, então?”
“Claro... ali vem um ônibus. É o seu!”
Dou sinal. O ônibus para. Levo-o até a entrada. Motorista abre a porta. O senhor pergunta se pode entrar por trás para pedir um “dinheirinho”. A contragosto o motorista permite.
Partem!
Fico ali, pensando no que acabou de acontecer. Mal tive tempo de ao menos perguntar seu nome. Com sorte consegui depositar um “dinheirinho” em sua mão enquanto ele subia as escadas.
Um senhor cego, morador de rua, negligenciado por muitos.
Encontrá-lo me fez repensar tantas coisas.
Não sei ao certo o que mudou em mim, mas saí bastante modificado desse encontro...

Por Felipe Dias Batista




Somos grãos

Marlene.
Ao mar, reme.

Lá estava ela, se banhando.
Será que ouvia o barulho das ondas?

Concreto e fumaça.
Na calçada, as pessoas continuavam seus trajetos, arrastadas como uma só massa de cegos e surdos para o grão de areia que ali estava. Uma onda de gente. Todos tão grão quanto aquele que cuidava de si em via pública, neste caso, também via particular.

Marlene estava sendo. Sendo água com quase nenhuma. Quando passamos por ela, tivemos o cuidado de esperar. Não queríamos atrapalhá-la num momento íntimo. A casa dela é a rua, o lugar de banhar-se também. Sim, ela estava tomando banho. Um galão de água umedecia um pano, o qual passava pelo corpo.
Quando nos aproximamos, num momento de pausa, ainda se banhando e completamente em casa, foi logo mostrando seu seio, disse que tinha areia e que vinha de Santos.
Durante toda a conversa, o amor por Santos e pelo mar esteve sempre presente.
Segundo ela, viaja vez ou outra para lá. Como? Não perguntamos. Penso também que não é preciso saber. O importante é que ela consegue viajar, saindo ou não fisicamente do lugar. Santos está com ela, nela.  Sustenta-a neste mundo de asfalto e concreto que é São Paulo.
Os muitos colares e anéis a destacavam, não perdeu a vaidade e o colorido num lugar que insiste em acinzentar os lugares e as pessoas.
Em um momento falou algo sobre um rádio, um rádio que só ligava quando perto do coração.
Quantas coisas realmente só ligam quando estão perto dele?
Marlene nos disse que somos fortes. Fiquei pensando na imensidão da força dela, que na conversa relatou que se esconde todas as noites da polícia para poder dormir, esconde também suas pouquíssimas coisas dentro da blusa para não ser roubada, vivendo no extremo do incerto minuto por minuto.

Ela é que é força. Imensidão.
Como o mar...


                                             Por Janina Arnaud

Mulhéres

A 5 dias do dia das Mães e exatos 5 dias depois do seu aniversário, Rosimere e eu nos conhecemos. Duas mulheres sentadas sobre a grama da Praça da República, sobre a vida. Seus desafios, seus cortes, suas viradas. Suas inesperadas piadas. A vida pega a gente de surpresa, né mesmo?
Rosi tem três filhos, cada um mora em um Estado e nenhum aqui. A filha Vitória, de 7 anos, vive em Curitiba, minha cidade. Rosi quer ir para lá, procurar a filha. Ela lembra perto de qual ponto de ônibus a casa da família que a acolheu fica. Eu acabo de voltar de Curitba. Agora já tá fazendo frio por lá.
Perdeu a mãe há quatro anos, que é ainda sua confidente e ombro. Ela passou parte dos dias deste mês em um quarto de pensão, mas o ambiente a fazia lembrar muito da mãe e preferia sair às ruas.
Como eu, Rosi já teve três maridos. Como eu, ela pensa em se separar graças à falta de carinho. Eu não amo ele, eu gosto dele. Como que a gente pode amar alguém que não faz carinho?
É o que eu sempre me perguntei.
Rosi frequenta a Igreja Mundial, mas pensa em sair de lá. Ela precisa de ajuda financeira para ir para Curitiba e esta Igreja não oferece.
Rosi, cê tem mesmo é cara de feiticeira.
Ela pressentiu que estava grávida as três vezes e agora pressentia de novo, o que a impede de se separar. Ela conversa com a mãe. Adivinha as caduquices do marido. Adivinha as minhas próprias.
Não, você diz isto por causa do cabelo!
Um cabelão preto azulado, pintado há pouco, como o ruivo meu.
Eu gosto é de cabelo vermelho, mas na Igreja não pode.
A Rosi é linda, uns olhos expressivos entre o verde e o castanho. A moldura de cabelos negros e mágicos. Um sorriso aberto e grande, faltando um dentinho que conta que a vida não foi fácil até ali.
Você é nova, sim! E nem parece 42! Nem aqui, nem na China!
Rosi quer ter seu próprio negócio. Ganhar 12 mil por mês e ter novas roupas. Em Curitiba, quem sabe.
Eu não gosto de me arrumar. Na rua, não dá. Eu não quero ninguém, sabe?
A Rosi já teve muitos nomes, muitas moradas, muitas vidas.
Ela, como eu, se prepara para uma nova. Que ninguém sabe qual, nem onde, nem por quê.

livy


terça-feira, 6 de maio de 2014

Música na rua

A música é uma linguagem artística universal, ela funciona como um diálogo imediato e aproxima as pessoas! Ela pode acontecer em qualquer lugar!
Foi assim que eu e o Tiago nos aproximamos do Roberto essa tarde, na praça da república.
Com muita conversa, muita risada e muita musicada se fez mais um encontro pelas ruas do centro de São Paulo. 

O video desse link abaixo:

https://www.youtube.com/watch?v=6_9yy0CC5t8&feature=youtu.be
 
inclui um pedaço musical do que foi a tarde, dá para escutar alguma coisa, embora a qualidade da gravação não seja a melhor.


Valeu!

Rita Couto


domingo, 27 de abril de 2014

Vida imensa

                                   Por Isabela Lisboa

De longe, ele me lembra Cazuza em tempos de força fragilizada. A gente se olha brevemente enquanto eu, caminhando em sua direção, percebo que ele, debruçado sobre um cesto enorme de lixo, amassa os sacos pretos com movimentos iguais ao de uma massagem cardíaca. Parece, nesse exato instante, que ele está organizando esse monte de coisas juntas e rejeitadas. Talvez a urgência de achar latas de alumínio em meio a tanta coisa fora vencida pelo cansaço. Ele seca o suor da testa com a manga da blusa e eu interrompo seu suspiro.


– Você tá com fome?


Eu suspeito a resposta e já sei aonde levá-lo. No caminho, ele diz que se chama Eduardo, tem 35 anos e mora na rua há 13. Ele escolhe o salgado de calabresa e o suco de abacaxi com hortelã. Na frente da pequena lanchonete, deixa a sacola de roupas e o saco de latinhas, para evitar olhares os quais considera mais ofensivos que qualquer xingamento. "É humilhante", lamenta. Mal sabe ele que, ali na entrada, seus pertences são ainda mais provocativos. Reações variadas surgem nos rostos dos passantes agora visíveis apenas por mim. De costas para o público, ele devora o salgado com bastante ketchup e bastante mostarda, deixa o constrangimento porta afora e narra fragmentos de sua intensa juventude.


Eduardo trocou a casa no Bairro do Limão por uma cela no CDP (Centro de Detenção Provisória) em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Foi preso em flagrante depois de assaltar um taxista, com ajuda de um amigo, na Rua da Consolação. "Tinha acabado de fazer 18 anos. Meu pai pediu chorando para o delegado me soltar, mas o cara disse que não podia, que Deus tinha um plano para mim”. O pai decepcionou-se para sempre. Eduardo reincidiu. No total, passou 16 anos preso. "Contando, não dá para você imaginar o que eu vi lá dentro", afirma, "mas hoje ninguém mais morre na cadeia". Ele acredita que, atualmente, o regimento interno (dos presos para os presos) dissemina, entre outras coisas, a igualdade e o respeito entre os detentos, e isso tem diminuído a violência dentro dos presídios. Mesmo assim, não quer voltar para lá. “Não devo mais nada”, completa.


A relação dele com a mãe alcoólatra é complicada. “Faz oito meses que eu não vejo minha mãe, e eu não tô a fim de ir lá”, revela. “Nem o namorado dela aguentou, foi embora”. Com o pai, o contato fica restrito devido à presença da madrasta. “Ela me odeia desde o primeiro dia em que me viu, não me olha nos olhos, e eu não vou lá porque não quero ser um peso”. O irmão foi o único familiar citado junto a uma dose de afeto. “Ele está preso por assalto, fez essa besteira também, mas eu sinto falta dele. A gente não se fala desde 2008”. Dona Maria, moradora da Favela do Moinho, guarda em seu barraco alguns pertences de Eduardo. “Passei lá e deixei o casaco que ganhei ontem”, “ela é uma pessoa boa”. 

Atualmente, Eduardo luta contra um câncer no estômago. Está careca, sem sobrancelhas e franzino em razão dos efeitos colaterais da quimioterapia, tratamento repetido mensal e/ou quinzenalmente na Santa Casa de São Paulo. “Vim pelo Elevado (Minhocão) porque ali só passa carro, não tem ninguém te olhando, te julgando... Eu não estava me sentindo bem”. O sonho dele é voltar a servir. “Servir a Deus”, explica. “Muitas almas já foram convertidas através de mim”, “agora tá difícil porque eu tô fora do caminho de Deus”, “já servi muito na cadeia, na rua...”, “vou voltar”, promete. Ele tira algo do meio dos dentes, coloca sobre a mesa e, em resposta à minha cara de curiosidade, diz que tem mania de mastigar coisas. “É um pedaço de vela de bateria”, afirma. Eu dou risada e ele completa: “tem louco para tudo”.



*O nome verdadeiro da personagem foi alterado para que sua identidade seja preservada.

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Pão doce

 Pão doce
Por Ariadne Senna

  - Oi moça, você não tem preconceito não, né?

  Foi assim que ela me abordou, Priscila, uma travesti moradora de rua que me interrompeu quando eu estava a uma quadra de chegar em minha casa. Respondi a ela que não e então Priscila se aproximou me dizendo que estava com muita fome e que não ia pedir dinheiro não, mas que agradeceria se eu pudesse lhe pagar ao menos um café com leite.
  Olhei para a quadra seguinte na qual estava a minha casa, senti o cansaço das minhas pernas e o peso das sacolas que eu carregava nas mãos depois de um dia agitado, olhei para a quadra de trás e então decidi ir com Priscila até a padaria mais próxima.

  - Desculpa fazer você voltar todo esse caminho – Priscila me disse.

  Respondi que não tinha problema porque era domingo e eu não estava com pressa, afinal, a correria durante a semana já é tanta que no domingo é preciso acalmar um pouco. Ela sorriu.

  Priscila me explicou que geralmente no horário do almoço passa um grupo distribuindo marmitex, mas naquele dia eles não tinham passado e que, portanto, ela estava desde de manhã até às 17h com o estômago vazio.
  Chegamos à padaria e me surpreendi – e também me alegrei – quando Priscila entrou comigo no estabelecimento comercial, sem medos e nem receios! Muitas vezes quando comprei alguma comida para alguém em situação de rua, a pessoa ficou do lado de fora do comércio, mesmo que eu insistisse que ela me acompanhasse. Priscila não. Priscila, como uma rainha, entrou de forma a saber que era direito dela também estar dentro daquele local.
  Já havia decidido que não iria simplesmente comprar um café com leite para Priscila, pois acreditava que ela precisava de algo que a alimentasse de verdade. Olhando para uma estante da padaria perguntei se ela queria algum pão recheado e eis que ela me respondeu que não, que ela queria um doce, que estava precisando de um doce!
  Internamente dei uma risada e até mesmo a julguei muito brevemente, logo depois me identifiquei e lembrei-me de quantas vezes na vida tive a necessidade de um doce e substituí meu almoço por algo bem calórico e açucarado. Se eu tinha esta possibilidade, por que Priscila não a poderia ter?
  Fomos estão ver os doces e mostrei alguns bolos:

  - Não tem nenhum rocambole? - perguntou Priscila, procurando.
  - Tem sim, estão aqui. Tem esse de doce de leite e esse de limão.
  - O de limão deve ser ruim né?
  - Pra ser bem sincera é uma delícia! Eu já comprei esse de limão uma vez e bem, eu gosto bastante.

  Ela escolheu levar o rocambole de limão e eu consegui convencê-la a levar além disso um pão recheado para ela se alimentar um pouco melhor. Saímos da padaria e continuamos conversando. Priscila falava muitas coisas e comentava sobre as pessoas que passavam por nós com um certo ar zombeteiro, mas quando perguntei como era morar na rua sua feição mudou e ela não falou muito, aparentemente Priscila não queria comentar sobre este lado da vida.

  - Viver na rua é cada um por si e Deus por todos. Você come o pão que o diabo amassou todos os dias.

  Voltamos ao local em que tínhamos nos encontrado e Priscila me agradeceu, respondi que tinha sido um prazer conhecê-la e ter conversado com ela. Ela ficou e eu continuei, ela então desejou que eu seguisse com Deus e eu segui. Segui desejando que ao menos naquele dia Priscila comesse um pão que tivesse sido amassado com amor e carinho e que aquele rocambole adocicasse um pouco sua vida.

terça-feira, 15 de abril de 2014

“Quando você muda o pensamento a dor muda.”



                                             
“Quando você muda o pensamento a dor muda.”

Essa foi uma das frases que mais nos atingiu e mais nos fez pensar.  O encontro do dia 08 de abril de 2014, próximo ao lago da Praça da República, foi de fato um inesperado presente.
A frase acima foi dita por José Pereira, 31 anos, natural de Natal – RN. Cabelos negros, lisos. Pele queimada dos sóis brasileiros. Olhos como duas grandes nozes inclinadas no rosto nordestino.  
Sua solidão era para nós um convite.
Antes de nossa chegada uma dor de dente incomodava imensamente José. No decorrer da conversa a afirmação dita como um fato sem importância: “Quando você muda o pensamento a dor muda.” A dor de dente foi brevemente esquecida.  
Andarilho. Caçula de três irmãos.  De passagem por São Paulo contava os dias para a próxima aventura: a cidade maravilhosa, seu destino favorito. Rio de Janeiro há muito ganhou o coração do simpático homem.
Despretensiosa e bastante sincera, a troca dessa marcante experiência foi pautada com assuntos diversos: falamos sobre teatro, família, amigos, morar nas ruas, perigos, morte, religião, copa, política, homossexualidade. José se colocava numa posição coerente, consciente e respeitosa face a esses assuntos. Seu único vício é o álcool. Sua solidão é uma escolha, ele prefere não se envolver com dependentes de drogas químicas.
Descobrimos suas ocupações anteriores : tatuador, baterista e reparador de ar condicionado.
Durante aquele encontro, sentados na beira do lago ao lado de José, estávamos disponíveis para escutar, compartilhar estórias e principalmente interromper o nosso cotidiano, oferecendo nosso tempo e nossa atenção àquela pessoa que, como tantos outros que moram na rua, passam despercebidos pela maioria. Até por nós mesmos.
Uma simples pergunta como “Qual o seu nome? De onde você é?” é um ponto de partida para a gente se olhar de fato,  com a mente aberta e sem nenhum preconceito.
Nas ruas moram e transitam as histórias mais surpreendentes que sequer imaginamos!

Felipe Dias 
Rita Couto

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os quinze minutos da estrela

                               Por Isabela Lisboa

Foi em defesa do paladar de sua cachorra que Nicole me pediu auxílio. Eu passava ao lado da Praça Franklin Roosevelt, no centro de São Paulo, quando minha distração foi cortada pelas palavras "ajuda", "comprar" e "ração". Ofereci as moedas que tinha e um pacote de biscoitos, que foi aberto instantaneamente.

Cuidado. De vez em quando ela morde. Essa cachorra é safada — me alertou Nicole, enquanto eu acariciava a cadela.

Já tinha visto a dupla por ali outras vezes, o que me provocou certo desconforto e algumas reflexões. Só olhar, porém, nunca altera o cenário real ou atravessa os personagens que nele vivem. Perguntei seu nome, o nome da cachorra e, para minha sorte e surpresa, naturalmente um diálogo foi iniciado.

Nicole nasceu em Belém do Pará e lá viveu até os 14 anos, quando veio para São Paulo. Na capital paulista, residiu na Favela do Moinho, região central da cidade, até 2011, ano em que a comunidade foi atingida por um grave incêndio, que deixou dois mortos, três feridos e mais de 1,5 mil pessoas desabrigadas.

Na época, o então prefeito Gilberto Kassab e a Secretaria de Habitação prometeram construir casas populares para remanejar os moradores das residências atingidas pelo fogo. O projeto não saiu do papel e apenas uma parcela do auxílio aluguel foi paga. Até hoje Nicole não conseguiu recuperar os documentos, que foram consumidos pelas chamas. Sem lar e carteira de identidade, ela também ficou sem emprego.

Seu endereço atual são os arredores do poderoso Edifício Itália, segundo maior prédio da cidade. Seus companheiros, a cachorra, Neguinha, e o marido, Cláudio. Sua vaidade, as grandes unhas e o cabelo, há algum tempo pintados de vermelho. Suas marcas de resistência, as inúmeras cicatrizes deixadas pelo atropelamento de um ônibus, em 2012, e a plena recuperação, após dez dias em coma na Santa Casa.

Eu agradeço, me despeço e digo que é provável nos vermos novamente, pois faço teatro ali perto. Ela emenda a despedida em uma nova confissão: "Adoro teatro!" Por um período, Nicole fez shows de dublagem em casas noturnas da rua Augusta e, numa delas, ganhou o Prêmio Scarpin. Duzentos reais em dinheiro, um relógio e um celular para a melhor drag queen da noite. Desbancou outras dezenove candidatas.

Com olhos brilhando como refletores, ela revela o desejo de retornar aos palcos: "Um dia eu volto." Espero que Nicole volte mesmo ao que ela considera teatro um dia. Torço para que essa Macabéa anônima seja arrebatada por qualquer ficção por pelo menos um instante. Ela merece descansar da realidade, dormir em colchão comum, molhar esses biscoitos em leite quente... A vida foi cruel com ela.

*Os nomes verdadeiros das personagens foram alterados para que suas identidades sejam preservadas.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Firmênio


Domingo no minhocão, a estrada se torna um espaço público de lazer.
Acontecem festas, encontros e alegrias se espalham.
Conheci Firmênio num desses domingos. Orginalmente da Bahia, ele vive em São Paulo desde 1986.
Me contou que sua idade era igual ao seu peso: 62 anos, 62 kilos.
Ele recolhe latinhas e faz truques com bastões.
Conversou comigo sobre muita coisa: desde sua vida na Bahia até sobre política e religião.
Estava muito preocupado com o avião que tinha desaparecido. Pegou num jornal que tinha no bolso, leu uma parte da notícia sobre o avião. Ao nos despedir, ele me deixou o jornal de presente: Fique com ele! Eu já li! Sorriu, e continuou sua caminhada,em busca das latinhas perdidas e espalhadas.


Rita Couto



terça-feira, 25 de março de 2014

Qual é o nosso nome?

Somos Ariadne, Felipe, Isabela, JaninaLeonardoLivyRita e Tiago, colegas e aprendizes da SP Escola de Teatro.  Vindos de diferentes áreas, como atuação, dramaturgia, humor e sonoplastia,  nosso interesse aqui é o olhar afetivo e o registro artístico sobre o morador de rua, este outro cujo nome dificilmente é descoberto.

Com abordagens diretas e sensíveis, nosso objetivo é delinear a imagem do próprio morador de rua partindo do seu nome e das experiências relatadas nesse encontro. Particulares e efêmeras, nossas conversas não serão capazes de produzir um retrato fiel do perfil dessas pessoas, tampouco transformaremos a estrutura física de suas vidas.  No entanto, a proposta é entender e recriar suas histórias a partir dos fragmentos que nos serão apresentados.

Narrativas e imagens únicas e diversas mostrarão a complexidade da comunidade de rua, que sofre, não só de impedimentos sócio-econômicos, mas também de invisibilidade social, sendo normalmente encarada como um massa homogênea de pessoas sem identidade.  Pretendemos resgatar a individualidade e história desses cidadãos, de forma a recuperar a memória de cada um e, mais amplamente, tentar entender a complexidade desse modo de vida tão banalizado e, ao mesmo tempo, tão singular.

Acreditamos que através deste contato, não só humanizamos nossos olhares, mas também nosso próprio entorno, uma vez que dividimos com nossos parceiros de pesquisa um pouco da sensibilidade que pretendemos trazer para o nosso teatro.

Não é apenas a arte que nos une, mas, acima de tudo, a questão humana que, obrigatoriamente, perpassa todas estas histórias e a nossa própria experiência.