domingo, 27 de abril de 2014

Vida imensa

                                   Por Isabela Lisboa

De longe, ele me lembra Cazuza em tempos de força fragilizada. A gente se olha brevemente enquanto eu, caminhando em sua direção, percebo que ele, debruçado sobre um cesto enorme de lixo, amassa os sacos pretos com movimentos iguais ao de uma massagem cardíaca. Parece, nesse exato instante, que ele está organizando esse monte de coisas juntas e rejeitadas. Talvez a urgência de achar latas de alumínio em meio a tanta coisa fora vencida pelo cansaço. Ele seca o suor da testa com a manga da blusa e eu interrompo seu suspiro.


– Você tá com fome?


Eu suspeito a resposta e já sei aonde levá-lo. No caminho, ele diz que se chama Eduardo, tem 35 anos e mora na rua há 13. Ele escolhe o salgado de calabresa e o suco de abacaxi com hortelã. Na frente da pequena lanchonete, deixa a sacola de roupas e o saco de latinhas, para evitar olhares os quais considera mais ofensivos que qualquer xingamento. "É humilhante", lamenta. Mal sabe ele que, ali na entrada, seus pertences são ainda mais provocativos. Reações variadas surgem nos rostos dos passantes agora visíveis apenas por mim. De costas para o público, ele devora o salgado com bastante ketchup e bastante mostarda, deixa o constrangimento porta afora e narra fragmentos de sua intensa juventude.


Eduardo trocou a casa no Bairro do Limão por uma cela no CDP (Centro de Detenção Provisória) em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. Foi preso em flagrante depois de assaltar um taxista, com ajuda de um amigo, na Rua da Consolação. "Tinha acabado de fazer 18 anos. Meu pai pediu chorando para o delegado me soltar, mas o cara disse que não podia, que Deus tinha um plano para mim”. O pai decepcionou-se para sempre. Eduardo reincidiu. No total, passou 16 anos preso. "Contando, não dá para você imaginar o que eu vi lá dentro", afirma, "mas hoje ninguém mais morre na cadeia". Ele acredita que, atualmente, o regimento interno (dos presos para os presos) dissemina, entre outras coisas, a igualdade e o respeito entre os detentos, e isso tem diminuído a violência dentro dos presídios. Mesmo assim, não quer voltar para lá. “Não devo mais nada”, completa.


A relação dele com a mãe alcoólatra é complicada. “Faz oito meses que eu não vejo minha mãe, e eu não tô a fim de ir lá”, revela. “Nem o namorado dela aguentou, foi embora”. Com o pai, o contato fica restrito devido à presença da madrasta. “Ela me odeia desde o primeiro dia em que me viu, não me olha nos olhos, e eu não vou lá porque não quero ser um peso”. O irmão foi o único familiar citado junto a uma dose de afeto. “Ele está preso por assalto, fez essa besteira também, mas eu sinto falta dele. A gente não se fala desde 2008”. Dona Maria, moradora da Favela do Moinho, guarda em seu barraco alguns pertences de Eduardo. “Passei lá e deixei o casaco que ganhei ontem”, “ela é uma pessoa boa”. 

Atualmente, Eduardo luta contra um câncer no estômago. Está careca, sem sobrancelhas e franzino em razão dos efeitos colaterais da quimioterapia, tratamento repetido mensal e/ou quinzenalmente na Santa Casa de São Paulo. “Vim pelo Elevado (Minhocão) porque ali só passa carro, não tem ninguém te olhando, te julgando... Eu não estava me sentindo bem”. O sonho dele é voltar a servir. “Servir a Deus”, explica. “Muitas almas já foram convertidas através de mim”, “agora tá difícil porque eu tô fora do caminho de Deus”, “já servi muito na cadeia, na rua...”, “vou voltar”, promete. Ele tira algo do meio dos dentes, coloca sobre a mesa e, em resposta à minha cara de curiosidade, diz que tem mania de mastigar coisas. “É um pedaço de vela de bateria”, afirma. Eu dou risada e ele completa: “tem louco para tudo”.



*O nome verdadeiro da personagem foi alterado para que sua identidade seja preservada.

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