quarta-feira, 2 de abril de 2014

Os quinze minutos da estrela

                               Por Isabela Lisboa

Foi em defesa do paladar de sua cachorra que Nicole me pediu auxílio. Eu passava ao lado da Praça Franklin Roosevelt, no centro de São Paulo, quando minha distração foi cortada pelas palavras "ajuda", "comprar" e "ração". Ofereci as moedas que tinha e um pacote de biscoitos, que foi aberto instantaneamente.

Cuidado. De vez em quando ela morde. Essa cachorra é safada — me alertou Nicole, enquanto eu acariciava a cadela.

Já tinha visto a dupla por ali outras vezes, o que me provocou certo desconforto e algumas reflexões. Só olhar, porém, nunca altera o cenário real ou atravessa os personagens que nele vivem. Perguntei seu nome, o nome da cachorra e, para minha sorte e surpresa, naturalmente um diálogo foi iniciado.

Nicole nasceu em Belém do Pará e lá viveu até os 14 anos, quando veio para São Paulo. Na capital paulista, residiu na Favela do Moinho, região central da cidade, até 2011, ano em que a comunidade foi atingida por um grave incêndio, que deixou dois mortos, três feridos e mais de 1,5 mil pessoas desabrigadas.

Na época, o então prefeito Gilberto Kassab e a Secretaria de Habitação prometeram construir casas populares para remanejar os moradores das residências atingidas pelo fogo. O projeto não saiu do papel e apenas uma parcela do auxílio aluguel foi paga. Até hoje Nicole não conseguiu recuperar os documentos, que foram consumidos pelas chamas. Sem lar e carteira de identidade, ela também ficou sem emprego.

Seu endereço atual são os arredores do poderoso Edifício Itália, segundo maior prédio da cidade. Seus companheiros, a cachorra, Neguinha, e o marido, Cláudio. Sua vaidade, as grandes unhas e o cabelo, há algum tempo pintados de vermelho. Suas marcas de resistência, as inúmeras cicatrizes deixadas pelo atropelamento de um ônibus, em 2012, e a plena recuperação, após dez dias em coma na Santa Casa.

Eu agradeço, me despeço e digo que é provável nos vermos novamente, pois faço teatro ali perto. Ela emenda a despedida em uma nova confissão: "Adoro teatro!" Por um período, Nicole fez shows de dublagem em casas noturnas da rua Augusta e, numa delas, ganhou o Prêmio Scarpin. Duzentos reais em dinheiro, um relógio e um celular para a melhor drag queen da noite. Desbancou outras dezenove candidatas.

Com olhos brilhando como refletores, ela revela o desejo de retornar aos palcos: "Um dia eu volto." Espero que Nicole volte mesmo ao que ela considera teatro um dia. Torço para que essa Macabéa anônima seja arrebatada por qualquer ficção por pelo menos um instante. Ela merece descansar da realidade, dormir em colchão comum, molhar esses biscoitos em leite quente... A vida foi cruel com ela.

*Os nomes verdadeiros das personagens foram alterados para que suas identidades sejam preservadas.

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